sábado, fevereiro 21, 2009

uma noite em 5 episódios

Uma fila de buffet. Nessa fila negam-nos comida, cobram-nos mais, roubamos qualquer coisa. Sabemos que existem outras salas onde os bolos são feitos com ovos verdadeiros mas nesta sala enorme de congressos, campo de férias, campo de concentração, a comida é composta de pseudo-alimentos e toda a gente faz o melhor que pode para se desenrascar.

*

É de noite e num longo corredor de madeira estão expostos quadros. Somos encarregues de os pintar a rolo. As cores são claras: rosa, laranja quase fluorescente. O ditador irá eleger o seu favorito esta noite. Devemos ser rápidos.

A vencedora habitual deste prémio enfurece-se. Aparentemente cometemos um erro. O seu quadro não deveria ter sido profanado. De qualquer forma projectamos sobre ele luz, cores, e à medida que estas se sucedem é visível através da tinta clara um rosto. Um retrato. O ditador.

*

Embrenhamo-nos mais fundo no campo, na casa, na instituição. Os percursos são interiores e também exteriores. Na rampa alcatroada ao ar livre ficamos na fila. Voltámos ao magote de gente que se atropela para o buffet. Há transexuais, gente deformada, avisto o nosso amigo cuja doença degenerativa torceu à cadeira de rodas, outros, estranhos e conhecidos, sorrisos e olhares ameaçadores. Julgo que nada disto é verdadeiro, parece-me que estão todos desesperados. Na bicha sou acusada de roubar um ramo de flores destinado, e pago a peso de ouro, a outra pessoa, sou acusada de tirar uma sobremesa que não é a estipulada pelo menu a que tenho direito. No fim roubo a sobremesa mais cara e agonio sob peso do pseudo-creme doce.

*

No fim de um dos corredores de quartos e balneários, surge a gruta aquática onde está aquela família (a nossa família?) e os bebés estão estranhos. Os bebés são estranhos. Tomo um nos meus braços e vamos nadar. Os olhos dele estão já mortos e exige submergir para sempre. Procuro ganhar tempo, oferecer-lhe contacto com o seu irmão humano, dar-lhe de comer. À medida que o dia declina sabemos que a transformação é inevitável e visível na textura da sua pele que se torna a cada minuto mais lustrosa e escorregadia e no seu corpo inchado, disforme, inumano.

Liberto-o e vemo-lo deslizar na massa de água negra. Não hesita nunca porque essa é a sua natureza e esse será também o seu fim.

*

É necessário desmontar a exposição, os quadros são agora extensos painéis no relvado húmido, verde, noite. Está em causa contrabandear a madeira e fugir daquela prisão. As tábuas são imensas, todos os painéis estão escorados com pesadíssimas vigas maciças e o camião é carregado clandestinamente por várias pessoas. A contrapartida é pintarmos 6 outdoors cobrindo a publicidade neles exibidos. Ao longo da estrada, montados nas pranchas roubadas, vamos cruzando o trabalho feito pelo primeiro grupo de fugitivos. Tememos pela nossa segurança: a pintura é humilhante, são visíveis os fantasmas daquilo que ali constava anteriormente e isso coloca-nos ainda mais em perigo.

Sei que é apenas um rapaz, mas permito que o desconhecido sentado atrás de mim envolva os seus braços à volta do meu corpo e me masturbe por cima da roupa. Prefiro não lhe conhecer o rosto.

Saber viver é vender a alma ao diabo

O meu amigo J*** ofereceu-me no Natal de 2007 um poema, a mim e mais alguns amigos. Foi assim que ele introduziu esta prenda.

"Nesta quadra horrível e solitária, um poema, público, para cada um de vós...".

Este foi o que me calhou e sei, porque o conheço, que não foi simplesmente o que me "calhou" e por isso agradeço-lhe.

Gosto dos que não sabem viver,
dos que se esquecem de comer a sopa
(Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s... b... de marchand de nuages?)
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.

Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.
Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em «grande parva, que ele há tanto homem!»

(Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?..)

Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros
que passa fomeca mas não perde proa e parlapié...

Passarinheiros, também gosto de vocês!
Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos implumes?

Não é viver.
É arte, lazeira, briol, poesia pura!

Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;
não me bandeio (que eu já vi esse filme...)
com gerações perdidas.

Mas senta aqui, mendigo:
vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!

E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia...

Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p'ra morrer?

Gosto deles assim, tão sem futuro,
enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrançais
e os politichiens si habiles, si rusés,
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!

Les portugueux...
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
... sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes...

Dize tu: - Já começou, porém, a racionalização do trabalho.
Direi eu: - Todavia o manguito será por muito tempo
o mais económico dos gestos!

*

Saber viver é vender a alma ao diabo,
a um diabo humanal, sem qualquer transcendência,
a um diabo que não espreita a alma, mas o furo,
a um satanazim que se dá por contente
de te levar a ti, de escarnecer de mim...

Alexandre O'Neill

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

a fuga


Hoje senti-me assim:



Por isso fugi para aqui:

Pelo caminho comprei uma destas:


domingo, fevereiro 15, 2009

E eis que voltaram as filas imensas para a casa de banho. Espaços amplos, modernos, cheios de gente. Um imenso museu talvez. Um enorme centro comercial de luxo. Qualquer coisa, não sei. Lá dentro labirintos de compartimentos e portas fechadas, ou portas abertas com fechaduras desengonçadas, muitas gabines ocupadas, poucas vagas. E as tentativas começam. Uma porta e tudo é absolutamente imundo, àgua, fezes, urina. Outra o porta: cenário de latrina, cenário de campo de concentração, em tudo semelhante a um festival de verão na sujidade mas muito mais triste, angustiante, sem alternativa. E não é que a vontade se faça sentir, mas tenho de continuar a tentar encontrar um sitio mais limpo, mais luminoso. Já nem sei sequer onde é a saida, já nada lembra que estamos num espaço dentro de um espaço moderno, amplo e luxuoso. As pessoas esperam frente aos compartimentos, as pessoas movimentam-se de um lado para o outro sem razão aparente, as pessoas entram. Concluo que não encontrarei nada melhor. Procuro apenas agora o menos mau. O menos mau é sórdido, talvez não seja sequer o menos mau, talvez seja igualmente mau. Água, mijo, merda. Procuro não tocar em nada, procuro não me molhar, procuro não deixar que o meu corpo se encoste às paredes que transpiram excrementos. Sou obrigada a reparar que existem duas retretes no mesmo compartimento. A privacidade não existe. Sujo-me. Saio. Acordo antes de chegar ao espaço amplo, moderno e luxuoso.

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

More than this

Tontices!

Vinha aqui para "postar" uma música muito bonitinha mas o castpost fintou-me. Como sou burrinha não conheço outro modo de o fazer, enfim...

Dito isto, ocorreu-me uma ideia bestial agora mesmo: "as mulheres só deviam apaixonar-se por outras mulheres". Pensei-o e um sorriso surgiu-me na face sem que o pudesse evitar. Que tonta sou!

sábado, fevereiro 07, 2009

Quando a ficção e a realidade se tornam demasiado próximas, a ilusão e a esperança se confundem, as palavras adquirem por vezes vida própria. Por tudo isso, peço desculpa.

as palavras que nunca me dirás

Esta noite vi-me ao espelho
Bebi licor de amoras
Calcei botas douradas
Cantei línguas estranhas
Porque amanhã volto a partir

Quero perder dinheiro
Jogar tudo o que ganho
Acender muitas velas
Pingar limão nas ostras
E de manhã não ver ninguém

Esta noite eu conto estrelas
Volto a dançar na praia
Enrolo-me em cetim
Conheço os versos raros
E amanhã fechei a mala

Aposto o que não tenho
Que me vais trazer rosas
Vais tocar-me na pele
Adormecer sem pressa
E de manhã chamar por mim

Quero entregar-te o mundo
Escrever-te uma carta
Menina do violino
Toca à minha janela
E de manhã podes dormir

Esta noite eu pago tudo
E acendo paus de incenso
Perfumo-te os cabelos
Vou deixar-te os meus livros
E de manhã já cá não estou


Clara Pinto Correia in "Canções que já não existem"

Adenda

Faz de conta que é só fechar a porta
E o mundo fica do outro lado
Agora eu sou a mais linda da festa
E tu és mesmo o meu namorado

Eu só quero beijar-te mais vezes
Faz de conta que vamos ter filhos
Numa casinha à beira da estrada
Que até tinha lagos com junquilhos

Hoje eu quero dizer para sempre
E viver a pensar só em ti
Faz de conta que é mesmo verdade
Que amanhã ainda estamos aqui

Posso olhar-te de frente nos olhos
Acreditar em tudo o que dizes
E enquanto durar esta noite
Faz de conta que vamos ser felizes

Clara Pinto Correia (estranhamente!) in "Canções que já não existem"