sábado, maio 09, 2009

Voyer I

Sentava-se à sua porta. Nem sempre o fazia, mas desde que descobrira onde vivia fazia-o cada vez mais frequentemente. Não sabia explicar porque desenvolvera esse hábito, mas já descobrira o local onde poderia vê-la alcançar o puxador da porta, abri-la, dar aquele pequeno salto para o passeio e deixa-la bater atrás de si. Já tinha visto este momento demasiadas vezes para ignorar que a porta nem sempre fica fechada no trinco, por vezes fica só encostada, mas ao contrário da maior parte dos seus vizinhos ela nunca se volta para trás para certificar-se disso. Nessa altura estava já completamente convencido de que ela não podia importar-se menos com a possibilidade de alguém entrar no prédio.

Do local onde se instalara podia ainda notar como a imagem dela se reflecte na montra do café, da tabacaria, da frutaria, do bazar, da loja de velharias que está sempre fechada, do talho que fechou de vez, da churrasqueira, do minimercado, da tabacaria e depois disso perde-a de vista. Sabe que no café ela verifica o cabelo preso e a curva da nuca, no talho escuro a forma como as calças lhe assentam, depois perde-se nos títulos dos jornais e compara as parangonas das revistas para de seguida desaparecer realmente dos seus olhos. Vê-a ainda por vezes se optar por atravessar a rua, mas nessa altura já está em modo de andamento automático e na verdade já não é ela, é o invólucro dela.

Hoje saiu cedo, ar fresco, mas o prenúncio era de um dia bom. Leva um casaco leve porque certamente já o prevê. Ele já estava lá. Não se tinha ainda instalado, dirigia-se apenas para lá. Agradeceu o facto de ainda a ter apanhado a sair, de outra forma ficaria convencido que dormiria até tarde.

(cont.)

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