sexta-feira, maio 22, 2009

Voyer II

Quando se deu conta da sua presença, ela estava a meia dúzia de passos da porta. O sol tornava o dia invulgarmente quente. Deixou-se estar no seu local mas o seu primeiro impulso foi correr em seu auxílio tomando-lhe dos braços vários dos volumes que transportava.

Não o fez. Se o fizesse deixaria de fazer sentido observá-la.

Não deixava, no entanto, de se surpreender com aquela capacidade absurda que ela demonstrava de trazer e levar. Carregar, transportar. As coisas que muda de sítio são sempre diferentes: caixas, sacos, papéis, canudos, tecidos, máquinas e livros. Ele tentava muitas vezes deslindar o significado daquelas idas e vindas. Ao fim de algum tempo começava a ser possível adivinhar onde ia, de onde vinha e podia até seguir o fio dos seus dias ou de uma ou outra coisa que a ela se dedicava naquele momento. Outras vezes era pura e simplesmente impossível entender o que aquele leva e trás esconde ou revela.

Naquele dia debatia-se, uma vez mais, com aquela bolsa de cor indefinida cujo tom se aproxima bastante dos sacos de plástico da Mariazinha. Procurava as chaves enquanto equilibrava na anca uma belíssima caixa de madeira daquelas que imaginamos a viajar em cargueiros. Esboçou um pequeno esgar de dor quando se rendeu à carteira e se baixou para pousar a caixa. Suspirou.

A carteira finalmente aberta em cima da caixa. Ele percorreu então os seus gestos demorados para encontrar o molho metálico que procurava e continuou olhando o suor que lhe preenchia o lábio superior, lhe molhava a t-shirt debaixo dos braços e numa fina linha abaixo do peito. Parecia aliviada pela pausa e por isso este procedimento levou muito mais tempo do que seria necessário.

Tal qual uma mula de infinita paciência, escolheu então o ombro para a carteira, mudou a caixa para o outro lado da anca e equilibrou-lhe aquilo que, aquela distância, parecia um molho razoável de fotocópias. Abriu finalmente a porta, que entreabriu primeiro com o pé e terminou de empurrar com as costas, rodando sobre si própria. Foi nesse segundo em que, com a cara húmida e brilhante pelo o sol, ela se virou novamente para a rua, ele lhe vislumbrou o olhar. Teve então a sensação, pela primeira vez, que os olhos vermelhos dela atravessaram os seus.

(cont.)

3 comentários:

Unknown disse...

Sabe bem e é muito cinematográfico e bem escrito.
Por favor, lê urgentemente o 1º conto das Pequenas Histórias - Bruce Holland Rogers.

j. disse...

Emprestas?

Unknown disse...

Claro que sim. Vais adorar. Uma espécie de checov do sec xxi